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UMA PONTE SOBRE O ATLÂNTICO: CONEXÕES ENTRE EUROPA E BRASIL NA OBRA DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO (1846

Por Rosangela de Jesus Silva (UNILA)*


No último dia 23 de janeiro completaram-se 114 anos do falecimento de Rafael Bordalo Pinheiro. A data foi lembrada no Museu que leva o seu nome, em Lisboa, com uma conversa, que permanece atual desde os tempos de Bordalo, sobre cartoon e censura. Poucos são os artistas que têm a “sorte” de contar com um espaço criado exclusivamente para reunir e divulgar a sua obra. Mas afinal, quem foi esse artista?


Caricaturista, ilustrador, ceramista, decorador, cenógrafo, pintor… qualificativos não faltam para definir esse artista que atuou em várias áreas e ainda hoje é uma referência nas artes gráficas e na cerâmica. Seria através de sua atuação na imprensa, com desenhos de grande força satírica, que esse lisboeta começaria a conquistar fama internacional e consagrar-se-ia como o mais importante caricaturista português do século XIX. Seu percurso na imprensa portuguesa começaria em 1870 com publicações como O Dente da Baronesa, Mercado dos Melões, O Calcanhar de Aquiles e O Binóculo. No ano seguinte aparece A Berlinda. Todos esses impressos foram de curta duração. Em 1875, na Lanterna Mágica, criou o seu personagem mais conhecido, o Zé Povinho, que tornar-se-ia símbolo do povo português e que também ganharia versão tridimensional através do trabalho cerâmico do artista. Mas o periódico de maior duração e considerado o mais representativo da obra gráfica de Bordalo Pinheiro é O António Maria (1a série: 1879-1885; 2a série: 1891-1898), que nas palavras de José-Augusto França “As suas páginas (…) iam correr a par do discurso político nacional, durante um quarto de século, sempre numa indesmentível independência.” (FRANÇA, 1980, p.163). O artista publicou ainda Pontos nos ii (1885-1891) e seu último trabalho foi n’A Paródia (1900-1907).


Ainda na década de 1870 colaborou em periódicos espanhóis como El Mundo Cómico (1873-1874) e Ilustración Española y Americana (1873) e na importante revista inglesa Ilustrated London News (1842-1971), tendo sido convidado por esta última para se tornar colaborador em Londres. Recusa o convite para Londres, mas em 1875 aceita ir para o Brasil cuidar da ilustração da revista O Mosquito, tendo ali permanecido até 1879.


Na outra margem do Atlântico Bordalo criou imagens satíricas para três revistas ilustradas, publicadas no Rio de Janeiro, e que marcariam a história da caricatura no Brasil: O Mosquito (1869-1877), Psit! (1877) e O Besouro (1878-1879), sendo que as duas últimas foram criadas por ele. O período brasileiro do artista é destacado por vários pesquisadores como o momento de amadurecimento de sua obra. Para Herman Lima, em sua História da caricatura no Brasil, “Foi no Brasil, efetivamente, que suas melhores qualidades de desenhista espontâneo e imaginativo – elegante no recorte de silhuetas femininas, não raro evocado da mais bela maneira de Gavarni, hilariante e implacável na fixação dos ridículos carecedores de escarmento – se expandiram em toda a pujança, amadurecendo ao sabor da multidão de assuntos oferecidos à sua observação e ao seu reparo. É assim que, de volta a Lisboa, pode entregar-se à parte mais importante de sua obra artística, aquela que mais longe lhe levou a fama e de modo mais duradouro lhe firmou o nome entre os grandes caricaturistas universais” (LIMA apud ARAÚJO, 1986, p.84).



Imagem 1: O Mosquito, Rio de Janeiro, N. 356, 8 de abril de 1876, p.4 e 5.


O desenho escolhido para ilustrar esse texto, publicado n’O Mosquito em 1876, é uma das pontes criadas por Bordalo entre Portugal e Brasil, e elas foram muitas. Estabelecidas em análises políticas e culturais através de imagens que constroem percursos em mão dupla, observamos olhares da América para a Europa e vice-versa. Nesta imagem, de grande atualidade no debate mundial, será a situação difícil do imigrante português no século XIX o tema representado por Bordalo. Ao fugir da condição de pobreza em Portugal, este partiria em busca do sonho de enriquecimento rápido no Brasil, mas defrontar-se-ia, segundo a análise de Bordalo, com inúmeras dificuldades e desilusões. Assim, o caricaturista desenha o Manoel Trinta Botões (representação do imigrante português no Brasil criada por Bordalo), disputado/empurrado pelos governantes de ambos os países. Em cada margem o artista coloca cuidadosamente elementos representativos das duas nações e aponta os responsáveis pela situação pouco confortável daquele obrigado a migrar. Do lado português: a Torre de Belém ao fundo com barcos que se afastam em direção ao “Novo Mundo”, o Zé Povinho em primeiro plano observando tudo de forma impassível e, em meio a uma natureza destruída, o rei D. Luís I (1838-1889) encabeça uma fila de políticos portugueses, representantes do governo naquele momento, culpabilizados pelas agruras que o povo português enfrentava. Do lado brasileiro é o então ministro dos Negócios do Império, José Bento da Cunha Figueiredo (1808-1891) é quem puxa o português. Cunha Figueiredo aparece apoiado sobre o Pão de Açúcar, cartão postal do Rio de Janeiro - a então capital do país –, em meio a uma natureza frondosa, marcada por altas palmeiras. Além da condição de estrangeiro do português em terras brasileiras, o caricaturista expõe o problema da febre amarela, caracterizada pela caveira e a foice que se observa na imagem e que o imigrante também encontraria nos trópicos. Segundo Rômulo Brito “O personagem foi também, em partes, uma tradução visual da experiência pessoal do próprio autor, que se via em uma nova realidade enquanto um caricaturista estrangeiro realizando críticas satíricas sobre temáticas brasileiras, o que gerava reações que, por vezes, destacavam a nacionalidade portuguesa do autor. Uma crítica à forma como os portugueses eram vistos e tratados no Brasil, criada por um português.” (BRITO, 2017, p.145).


A relação de Bordalo com o Brasil também ficaria marcada por outra faceta de seu trabalho artístico: a cerâmica. Uma atividade que começaria em meados da década de 1880 com o objetivo de fomentar a indústria nacional portuguesa e divulgar a faiança artística. Juntamente com seu irmão Feliciano Bordalo Pinheiro (1847-1905), criou uma fábrica de cerâmicas nas Caldas da Rainha, assim como uma escola para formar aprendizes e propagar aquela arte. A partir de 1884 se dividirá entre o trabalho gráfico na imprensa e a fábrica de cerâmica, bem como na divulgação das peças através de exposições pelo mundo. Uma dessas exposições e, que contou com a presença do artista, ocorreu em 1899 no Brasil. Neste país deixaria aquela que é considerada sua obra prima em cerâmica: a Jarra Beethowen. Com dimensões pouco comuns para tal objeto, 2,30m de altura e, por sua grande complexidade em termos decorativos, foi desacreditada por muitos contemporâneos como impossível de ser concretizada, mas vencidos os obstáculos de cozimento, vidrados e transporte a jarra está hoje no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.


A obra desse artista múltiplo e que ofereceu enorme contribuição para a formação visual de inúmeras gerações pode ser vista, pesquisada e apreciada no Museu Rafael Bordalo Pinheiro. Além da exposição permanente da obra do artista, a instituição promove exposições temporárias como a atual “Formas do Desejo: a cerâmica de Rafael na coleção do Museu Bordalo Pinheiro” (2017 – 2019). A exposição tem curadoria dos pesquisadores Mariana Caldas de Almeida e Pedro Bebiano Braga e oferece ao público um percusso criativo propondo relações da faiança artística e dos azulejos com outras expressões artísticas de Bordalo. As exposições temporárias permitem apresentar ao público um pouco mais do enorme acervo do Museu que conta com mais de 13 mil itens. Há ainda a promoção de atividades educativas e conversas sobre ou a partir da obra de Bordalo Pinheiro.


O site da instituição acabou de ser reformulado e permite que se possa conhecer um pouco mais desse artista. Há inúmeras ferramentas extremamente úteis para interessados e curiosos. Deixemo-nos seduzir pelo universo bordaliano, deleite visual que sabemos como começa, mas nunca onde pode nos levar. https://museubordalopinheiro.pt/



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* Doutora em História da Arte pela UNICAMP e professora do Instituto Latino-americano de Arte Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-americana – UNILA (Paraná -Brasil). Desenvolve pesquisa de pós-doutoramento na Universidade de Évora – Portugal (2018-2019) intitulada: Circulação, conexões e visualidades entre América Latina e Europa: contribuições de Rafael Bordalo Pinheiro na imprensa ilustrada oitocentista.



Referências:


BRITO, R. J. R. Um traço sobre o Atlântico: O Brasil na obra caricatural de Rafael Bordalo Pinheiro (1870-1905). Tese de doutorado. Porto Alegre: PUC-RS, 2017.


FRANÇA, J. A. Rafael Bordalo Pinheiro o português tal e qual. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980.


LIMA, H. “Rafael Bordalo Pinheiro”. in: ARAÚJO, E. (curadoria). Rafael Bordalo Pinheiro – o português tal e qual: da caricatura à cerâmica. O Caricaturista. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1986. p. 81-91.


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